O Padeiro
1 Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro
2 a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro
3 de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não
4 é bem uma greve, é um lockout, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno;
5 acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não
6 sei bem o que do governo.
7 Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto
8 tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha
9 deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os
10 moradores, avisava gritando:
11 – Não é ninguém, é o padeiro!
12 Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?
13 “Então você não é ninguém?”
14 Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe
15 acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra
16 pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a
17 pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim
18 ficara sabendo que não era ninguém.
19 Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis
20 detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante.
21 Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada
22 que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e
23 muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda
24 quentinho da máquina, como pão saído do forno.
25 Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante
26 porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem
27 assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na
28 porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem
29 entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
30 E assobiava pelas escadas.
(Rubem Braga)
1. O texto de Rubem Braga é um(a):
a) fábula: conta uma história curta que ilustra um preceito moral.
b) notícia: comunica uma informação de modo simples e objetivo.
c) artigo de opinião: apresenta argumentos favoráveis à profissão de padeiro.
d) crônica: relata com sensibilidade fatos do cotidiano, de um ponto de vista pessoal.
2. Ao trazer à tona as lembranças de um padeiro, Rubem Braga:
a) reflete sobre a modéstia e a simplicidade.
b) descreve com minúcias seu tempo de mocidade.
c) expressa sua insatisfação quanto ao trabalho noturno.
d) critica a forma como os patrões costumam tratar seus subordinados.
3. O enunciado “Não é ninguém, é o padeiro!” denota que “padeiro” é uma:
a) pessoa de pouca importância.
b) profissão sem qualquer utilidade.
c) profissão reconhecidamente útil e alegre.
d) pessoa alegre, sorridente, mas dada a gracejos.
4. Rubem Braga dá provas de sua humildade em:
a) “Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno” (linha 21).
b) “Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante” (linhas 19-20).
c) “E às vezes me julgava importante por que no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome” (linhas 25-27).
d) “Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina – e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno” (linhas 21-24).
5. As reticências em “Assim ficara sabendo que não era ninguém...” (linhas 17-18) indicam:
a) emoção excessiva.
b) dúvida e incerteza.
c) interrupção na oração.
d) ideia além do que foi expresso.
6. A locução “ainda que” (linha 20) e o advérbio “ainda” (linhas 23) estabelecem, respectivamente, relações de:
a) restrição e tempo.
b) concessão e tempo.
c) restrição e intensidade.
d) concessão e intensidade.
7. Há relação lógico-semântica de causalidade em:
a) “De resto não é bem uma greve, é um lockout, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno” (linhas 3-4).
b) “Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento – mas não encontro o pão costumeiro” (linhas 1-2).
c) “Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente” (linhas 7-8).
d) “E às vezes me julgava importante por que no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome” (linhas 25-27).
8. Quanto às relações de sentido, é correto afirmar que:
a) “abluções” (linha 1) significa “reflexões”.
b) a preposição “para” (linha 9) indica direção.
c) o advérbio “assim” (linha 17) expressa modo.
d) a locução “de resto” (linha 3) anuncia uma transição do pensamento.
9. As ideias e a correção textual não seriam respeitadas, caso se substituísse:
a) “obrigando” (linha 5) por “se obrigarem”.
b) “vou me lembrando” (linha 8) por “recordo de”.
c) “quase sempre” (linha 22) por “ininterruptamente”.
d) “No mesmo instante” (linha 2) por “imediatamente”.
10. Quanto ao uso dos sinais de pontuação, é falso afirmar que:
a) as aspas em “Então você não é ninguém?” (linha 13) sinalizam discurso direto.
b) a vírgula é desnecessária em “Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo” (linha 19).
c) o ponto de exclamação em “Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo!” (linha 25) marca a emoção do autor ao voltar-se para o passado.
d) não haveria prejuízo do sentido e da correção, se as vírgulas fossem suprimidas em “Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno” (linha 21).